A RECEITA DO CONTRATO REALIDADE


João Eduardo Cavalcanti

Num outro artigo que escrevi, tive a oportunidade de apontar peculiaridades do Direito do Trabalho que não se apresentam em outras esferas do Direito, a exemplo do princípio protetor, também presente no Direito Consumerista.

Neste, pretendo avançar em uma outra peculiaridade ínsita a esta disciplina jurídica, que ainda causa certa estranheza e alguma indignação às pessoas que tem pouca intimidade com este ramo da ciência jurídica.

Sem sombra de dúvidas, o ponto mais abordado nas rodas de conversas sobre o Direito do Trabalho diz respeito ao reconhecimento ou não do vínculo de emprego de um trabalhador, que não teve sua carteira de trabalho anotada.

E isto pode se dar por diversos motivos, sendo a mais comum aquela em que o empregador deixa de anotar a CTPS do seu colaborador, de forma deliberada, para escapar de encargos trabalhistas.

Por outro laudo, também existe aquele tipo de contratação que detém em sua origem uma determinada natureza jurídica, mas, lá pelas tantas, se transforma numa outra, fazendo nascer o vínculo de trabalho entre as partes envolvidas.

Lembro de uma outra forma de contratação, escorada em institutos jurídicos formais disponíveis na legislação pátria, mas que quando posta em análise pelo judiciário trabalhista, este não vacila para reconhecer a existência de vínculo de emprego entre as partes contratantes, não obstante tenha o empregador se valido de institutos previstos em lei.

Não é incomum, portanto, que trabalhadores autônomos ou até sócios de empresas passem a ser considerados verdadeiros empregados, submetidos ao regramento disposto pela CLT, causando indignação àqueles afetados desfavoravelmente pelo reconhecimento do vínculo de emprego pelo juiz trabalhista.

Deixando de lado a primeira hipótese (ausência deliberada da anotação na CTPS), as duas outras são o verdadeiro objeto deste artigo.

Vamos lá!

Independentemente do objetivo original que se deu a contratação de um trabalhador, o que revelará a natureza jurídica do trabalho que ele desenvolverá é a forma como, de fato¸ o trabalho se desenvolverá e se desenrolará no tempo.

É o que a doutrina denomina de contrato realidade, e que a CLT dispõe no seu artigo 3º. Assim, independentemente do ajustado ou prometido no início da contratação, é no contexto do trato diário declinado ao trabalhador que se ditará se ele tem ou não vínculo de emprego com o seu empregador.

É nesse momento que os formalismos (contrato de autônomo; estatuto social etc.) cedem em favor da realidade experenciada por ambas as partes: contratante e contratado.

Mas como identificarmos a existência de vínculo de emprego?

Nas minhas explanações sobre o tema, costumo usar o exemplo de um “pão de ló” para explicar o fenômeno jurídico do contrato realidade. Por mais que denominemos o resultado da cocção da mistura de ovos, açúcar, farinha, água e fermento, com outro nome, o que sairá do forno após 50 minutos, será sempre um pão de ló.

Por outro lado, se esquecermos de um ou outro ingrediente acima listado, é certo que teremos um outro produto final, mesmo que o denominemos de pão de ló.

Isto também acontece com os “ingredientes” que formam o vínculo de trabalho, a saber: pessoalidade; subordinação; onerosidade; e habitualidade.

Nesta senda, se o trabalhador, mesmo subordinado, puder eleger uma outra pessoa para substituí-lo no trabalho, o vínculo de emprego não surgirá, pois ausente o requisito da pessoalidade. Se um outro trabalhador não puder se fazer substituir por outrem, for subordinado, e receber pelo trabalho, mas desenvolvê-lo numa periodicidade de uma vez por semana, o vínculo não se estabelecerá, pois à evidência que não há o requisito da habitualidade.

Em suma: para que se reconheça a existência do vínculo de emprego, é necessária a presença de todos os elementos acima apontados de forma simultânea, sob pena de o pão de ló se transformar num biscoito, aproveitando-se da analogia feita.

Por outro lado, e por lógica, não basta elaborar um contrato de prestação de serviços dispondo sobre a inexistência de quaisquer dos elementos apontados para se imiscuir da anotação da CTPS do trabalhador, pois, se todos eles estiverem presentes, o vínculo empregatício estará estabelecido.

Nos anos 90 tive a satisfação de participar de um congresso de Direito do Trabalho onde nos foi apresentado como a CLT viva o professor Arnaldo Lopes Süssekind (09/07/1917 – 09/07/2012), ex-ministro do trabalho e do TST. E este epíteto que lhe foi dado se deveu ao fato de ter integrado a comissão nomeada por Getúlio Vargas, em 1942, para elaborar a CLT, e, na oportunidade do evento, era o único jurista ainda vivo que tinha participado de tal projeto.

E qual a importância dele neste contexto?

No evento, o professor Arnaldo Süssekind afirmou a todos os presentes que tinha sido ele que havia redigido o artigo 9º da CLT, que dispõe que “Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”.

Ora, numa primeira análise pode-se acreditar que o princípio contido no artigo 3º da CLT bastaria para que os envolvidos na relação de trabalho entendessem que seria suficiente a presença dos requisitos configuradores do vínculo empregatício (pessoalidade, subordinação, habitualidade e onerosidade) para que toda e qualquer forma utilizada para camuflar o contrato realidade fosse considerado nulo.

Mas o legislador, na pessoa do professor Arnaldo Süssekind, quis reforçar o subliminarmente prescrito, estabelecendo de forma assertiva que os pressupostos fáticos sobrepõem os institutos jurídicos, tornando nulos quaisquer atos (contratos de prestação de serviços; declarações unilaterais firmadas pelo trabalhador; estatutos societários etc.) que têm como objetivo desvirtuar a lei que tutela o trabalho subordinado.

Assim, tenho para mim que os princípios contidos nos artigos 3º e 9º da CLT se completam, e têm como objetivo precípuo afastar interpretações da lei trabalhista que se distanciem do seu escopo primordial que é tutelar o trabalho subordinado.